O destino da vida

salome torquato heli.jpg Maria Salomé, Torquato Neto e Heli Nunes

“Caetano havia chegado a Teresina para um show. Estava muito triste. Retornava pela primeira vez à cidade onde havia nascido um de seus principais parceiros na Tropicália e seu grande amigo, o poeta Torquato Neto, meu primo, que havia se suicidado em 1972”, escreveu o jornalista, poeta e escritor piauense Paulo José Cunha.

Foi a partir desse momento que começou a ser escrita a história das entrelinhas de Cajuína, música de Caetano Veloso gravada em 1979 para o disco Cinema Transcendental. Oito versos de um xote um tanto melancólico que se questiona sobre a efemeridade da vida, de belezas e mistérios.

A canção começou a ser composta por Caetano quando chegou a Teresina (PI) com a turnê Muito e recebeu no hotel a visita de Dr. Heli Nunes, o pai de Torquato. Aquela era a primeira vez que o encontrava após o trágico fim do amigo.

“Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental”, relembrou Caetano, que não havia chorado no momento em que recebeu a notícia da morte súbita de Torquato. Foi apenas ao se encontrar com Dr. Heli, anos depois do ocorrido, que sua “dureza amarga se desfez”, como traduziu o próprio Caetano.

torquato_caetano_capinan.jpg Torquato, Caetano e Capinan

Naquele momento de reencontro, Caetano derramou as lágrimas guardadas e foi consolado com grande ternura pelo pai de seu amigo. Dr. Heli o levou até sua casa e lá ficaram a sós (já que Dona Maria Salomé, mãe de Torquato, estava hospitalizada). Ele conta que não trocaram muitas palavras, mas contemplaram juntos as inúmeras fotografias de Torquato expostas pelas paredes da casa.

Dr. Heli, como se desejasse relembrar a beleza da vida, deu ao amigo de seu filho uma rosa-menina colhida diretamente do quintal; e também serviu cajuína, como se quisesse adocicar aquele instante. Caetano continuava a derramar lágrimas, mas não mais de tristeza ou amargura. “Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Dr. Heli e a Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei”, simplificou Caetano.

E foi no dia seguinte, quando pegou a estrada, que Caetano escreveu Cajuína, expressando em palavras cantadas a complexidade e simplicidade de momentos que despertam sentimentos quase intraduzíveis.

O Anjo Torto

PD94f001.jpg Chico e Torquato

Em 1967, o Tropicalismo se firmava como movimento cultural e tinha como grande letrista Torquato Neto. Ele assinou importantes canções, como Geleia Real, Louvação, Marginalia 2, Mamãe Coragem e Deus vos Salve esta Casa Santa, fazendo parcerias com Gilberto Gil, Caetano Veloso, Edu Lobo e Jards Macalé. No período pré-Tropicalista, também conheceu Chico Buarque de Holanda, de quem se tornou grande amigo.

Mas aqueles eram tempos difíceis para sonhadores. Fazer arte significava um ato de bravura e a censura tentava calar Torquato, que, além de letrista e poeta, também era jornalista, tendo assinado por muitos anos a coluna Música Popular, do jornal O Sol, e também a polêmica Geleia Real, publicada no Última Hora. Com a repressão, Torquato se afastou de tudo e todos e chegou a se internar voluntariamente por conta de sua instabilidade mental agravada.

Torquato Neto, conhecido como o Anjo Torto da Tropicália, cometeu suicídio no dia 10 de novembro de 1972, um dia após seu aniversário de 28 anos. Foi ainda na madrugada, após seus convidados terem deixado sua casa no Rio de Janeiro (RJ), que decidiu abrir as torneiras de gás de seu banheiro. Lá foi encontrado morto ao amanhecer, asfixiado.

640 454.jpg Torquato Neto no filme “Nosferatu do Brasil”, de 1971

Os jornais da época relataram que as últimas anotações encontradas em seu caderno de espiral traziam frases como Pra mim chega e O amor é imperdoável, esta última atribuída a Caetano Veloso. No livro Torquato Neto: uma poética de estilhaços, o escrito Paulo Andrade transcreveu a nota de suicídio assinada pelo poeta:

“FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar”.

Quanto a seu pai, Dr. Heli, faleceu em 2010, aos 92 anos de idade. Seu sepultamento foi realizado por Thiago Silva de Araújo Nunes, único filho do poeta piauiense.

Confira aqui a íntegra do relato de Caetano sobre a composição e aqui o trecho de sua participação no Programa Livre, onde também fala sobre a história por trás da música. E, por fim, a interpretação de Cajuína, em 1982 e 2012:

Cajuína, de Caetano Veloso

Numa excursão pelo Brasil com o show Muito, creio, no final dos anos 70, recebi, no hotel em Teresina, a visita de Dr. Eli, o pai de Torquato. Eu já o conhecia pois ele tinha vindo ao Rio umas duas vezes. Mas era a primeira vez que eu o via depois do suicídio de Torquato. Torquato estava, de certa forma , afastado das pessoas todas.

Mas eu não o via desde minha chegada de Londres: Dedé e eu morávamos na Bahia e ele, no Rio (com temporadas em Teresina, onde descansava das internações a que se submeteu por instabilidade mental agravada, ao que se diz, pelo álcool). Eu não o vira em Londres: ele estivera na Europa mas voltara ao Brasil justo antes de minha chegada a Londres. Assim, estávamos de fato bastante afastados, embora sem ressentimentos ou hostilidades. Eu queria muito bem a ele. Discordava da atitude agressiva que ele adotou contra o Cinema Novo na coluna que escrevia, mas nunca cheguei sequer a dizer-lhe isso.

No dia em que ele se matou, eu estava recebendo Chico Buarque em Salvador para fazermos aquele show que virou disco famoso. Torquato tinha se aproximado muito de Chico, logo antes do tropicalismo: entre 1966 e 1967. A ponto de estar mais freqüentemente com Chico do que comigo. Chico eu eu recebemos a notícia quando íamos sair para o Teatro Castro Alves. Ficamos abalados e falamos sobre isso. E sobre Torquato ter estado longe e mal. Mas eu não chorei. Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental.

Quando, anos depois, encontrei Dr. Eli, que sempre foi uma pessoa adorável, parecidíssimo com Torquato, e a quem Torquato amava com grande ternura, essa dureza amarga se desfez. E eu chorei durantes horas, sem parar. Dr. Eli me consolava, carinhosamente. Levou-me à sua casa. D. Salomé, a mãe de Torquato, estava hospitalizada. Então ficamos só ele e eu na casa. Ele não dizia quase nada. Tirou uma rosa-menina do jardim e me deu. Me mostrou as muitas fotografias de Torquato distribuídas pelas paredes da casa. Serviu cajuína para nós dois. E bebemos lentamente.

Durante todo o tempo eu chorava. Diferentemente do dia da morte de Torquato, eu não estava triste nem amargo. Era um sentimento terno e bom, amoroso, dirigido a Dr. Eli e a Torquato, à vida. Mas era intenso demais e eu chorei. No dia seguinte, já na próxima cidade da excursão, escrevi Cajuína.

Caetano Veloso 

Publicado originalmente aqui.

O eterno brilho de Marilyn

lala1

No dia 5 de agosto de 1962, aos 36 anos de idade, uma estrela chegava aos céus. Solitária em sua casa, Marilyn Monroe encontrou o fim de sua vida após ingerir 50 comprimidos de Nembutal. Nua, coberta até os ombros, com o rosto afundado no travesseiro e uma das mãos apoiada sobre o telefone: assim foi sua última cena.

Marilyn, cuja vida se resume a uma busca incansável pela felicidade, escrevia sobre sua relação com o mundo hollywoodiano.

“Nunca tive a sorte de conhecer a felicidade e por isso nunca acreditei que a felicidade chega quando menos se espera” ; “Não sei por que as pessoas não são mais generosas umas com as outras”.

E, em uma de suas últimas declarações, refletiu:

“Talvez fosse um alívio ter acabado com tudo. A glória pode vir e depois, um dia, nos dizer adeus”.

Com certeza, a atriz foi uma das divas mais talentosas e belas do cinema – mas também uma das mais polêmicas e problemáticas. Marilyn sofria com o abuso de remédios – tanto que uma overdose a impediu de continuar sua história.

tumblr_mch5hotua41rdr2h4o1_r2_500

Talvez o sensacionalismo criado em torno de sua figura tenha a levado a entrar em desgraça. Talvez seus limites tenham sido extrapolados e suas forças, sugadas. Sua morte quebrou o ideal de felicidade, de beleza e de verdade ditadas pela sétima arte norte-americana – Marilyn foi uma vítima de Hollywood.

No ano de seu falecimento, o cineasta Nicholas Ray declarou que “Marilyn Monroe jamais será igualada por nenhuma outra atriz”. E isso continua sendo verdade, Nicholas.

Norma Jean (seu verdadeiro nome) nunca conheceu seu pai, um marinheiro nórdico. Sua mãe, Glandys Bakes, jamais pôde se dedicar ou mostrar-se presente. Por estes motivos, a pequena Jean passou por diversos orfanatos; por diversas casas de caridade; por diversas casas de família que não a adotaram.

Mas a garotinha logo amadureceu e despertou a atenção de muitos pretendentes. Um deles era James Dougherty, com quem chegou a se casar. Porém, a guerra viria para transformar os sonhos da família perfeita em cinzas. Com a separação, teve que encontrar meios de se sustentar e começou a trabalhar em uma fábrica de artefatos militares. Norma Jean estava mais uma vez em plena solidão.

MARILYN MONROE'S FIRST HUSBAND JAMES DOUGHERTY

Mas as surpresas estavam prestes a surgir: sua beleza foi descoberta, e isso a levou às capas de revistas e ao mundo do cinema. Depois de pequenas participações e papéis nos filmes Idade Perigosa (1947), Torrentes de Ódio (1948) e Mentira Salvadora (1948), Marilyn encontrou dificuldades de ser aceita em novos papéis.

Necessitando de dinheiro e sem novos convites de estúdios, resolveu posar para fotos de calendário. Não muito depois de lançado o calendário com suas fotos, eis que lhe surge John Huston.

monroe-calendar

Huston foi quem dirigiu o primeiro grande papel de Marilyn Monroe, e também o seu último: a sua apresentação em O Segredo das Jóias (1950) e seu adeus em Os Desajustados (1961). De 1948 a 1962, Marilyn brilhou nas telas do cinema. Uma Estrela D’Alva, Afrodite ou Vênus, como preferir, viveu na Terra em sua forma mais humana e sua presença jamais será esquecida.

Um amigo Aspie

max_aspies.jpg

Personagens pálidos, repletos de defeitos, fora dos padrões. Assim são Mary e Max, protagonistas de uma animação inspirada em fatos reais que muito tem a ensinar aos adultos sobre as deficiências do ser humano.

Mary e Max – Uma Amizade Diferente (Austrália, 2009, direção de Adam Elliot) conta a história de Mary Dinkley, uma solitária menina de oito anos que vive na Austrália, e Max Horovitz, um judeu nova-iorquino de 44 anos que tem Síndrome de Asperger (uma variação do autismo).

A amizade entre duas pessoas aparentemente distintas começa quando Mary escreve uma carta para um endereço aleatório dos Estados Unidos a fim de saber a origem dos bebês. É por meio dessa carta que Max conhece sua primeira e única amiga – e essa amizade é correspondida por quase duas décadas.

São muitos os temas discutidos durante o filme: solidão, amor, amizade, obesidade, traumas infantis, interação social, diferenças sexuais e religiosas, alcoolismo, compulsão, pânico e o que é a Síndrome de Asperger. Apesar de tratarem sobre assuntos complexos e adultos, Mary e Max têm a inocência e simplicidade de criança.

Com um pai ausente e uma mãe alcoólatra, Mary vê em Max uma pessoa capaz de responder a todos os seus “por quês”. Entretanto, Max passa por um misto de sofrimento e alegria a cada carta recebida. Mary o faz lembrar-se de momentos angustiantes de sua vida, como o preconceito que sofria quando jovem. Devido a seu bloqueio em interpretar sentimentos, Max teve que superar seus limites para, de alguma forma, ajudar sua amiga.

love-yourself-first.png

Orgulhando-se de ser um “Aspie” (como carinhosamente se intitula), Max também ensina o que é aceitar-se. Apesar de os médicos o chamarem de incapacitado e tentarem o “curar”, o personagem acredita que cada um tem suas dificuldades, e deve aprender a lidar com elas. Afinal, seres humanos não são perfeitos – e isso pode ser provado por Mary, com seus óculos de grau, ou por seu vizinho, que sofre de gagueira.

O que Mary e Max têm a ensinar é que todos são capazes de superar seus limites se puderem compreender uns aos outros. Max teve a sensibilidade para perceber as angústias e tristezas de Mary. Ela, por sua vez, viveu a luta de compreender a mente de uma pessoa com a Síndrome de Asperger.

Mary e Max souberam respeitar suas diferenças e conseguiram achar pontos comuns para viverem uma grande amizade. Ser sensível com as diferenças, sejam elas diagnosticadas ou não: essa é a maior lição que Mary e Max – Uma Amizade Diferente tem a passar.

Publicado originalmente aqui.

American way of life

godblessamerica.jpg

Escrito e dirigido pelo norte-americano Bobcat Goldthwait, God Bless America (2011) critica de maneira extrema e escandalosa os valores da sociedade contemporânea. Trata-se de um filme polêmico devido ao excesso de violência e à (suposta) apologia ao uso de armas.

O filme pode ser classificado como algo que varia entre cinema esquizo (ou de esquizofrenia) e cinema de recuperação: protagonistas psiquicamente instáveis e cínicos utilizam métodos escrachados e exibicionistas de violência para se recuperarem do mal-estar momentâneo.

Frank (Joel Murray) aparentemente já não tem nada a perder: solitário e depressivo homem de meia-idade, enfrenta problemas familiares e perde seu emprego após ser acusado falsamente de abuso sexual. Como se não bastasse, Frank ainda descobre que está doente – e em estágio terminal. Sua decadência e a falta de motivação para continuar a viver são motivos que o levam a repensar suas escolhas.

joelmurraytaralynnebarr.jpg

Cansado das atitudes individualistas, do materialismo capitalista, do consumo excessivo, da futilidade e da espetacularização da vida por parte da mídia, Frank decide mostrar sua indignação. Torna-se um exterminador de pessoas consideradas fúteis e inúteis para a civilização – como estrelas de reality shows, racistas, homofóbicos e aqueles que acreditam que o mundo gire ao seu redor.

Por acaso Frank conhece Roxy (Tara Lynn Barr), uma colegial de 16 anos que se torna seguidora de seus princípios. Enfim juntos, eles dão início a uma espécie de missão “salvadora da pátria”. Em meio à ação, sarcasmo e assassinatos, os diálogos e cenas de God Bless America despertam reflexões sobre os rumos que a sociedade do século XXI segue.

god-bless-america1-1.jpg

Uma das críticas mais relevantes é feita à filosofia de vida do mundo pós-moderno: tenho, logo existo – o materialismo somado ao consumismo e o desejo de exibir. Apenas os ideais de um homem não o fazem grandioso; porém, os bens materiais que possui têm o poder de trazer felicidade e status social. É desta maneira que dita a mídia: as aparências prevalecem, enquanto a essência é descartada.

Outro ponto a ser notado em God Bless America relaciona-se à alienante indústria cultural americana. O sensacionalismo midiático é consumido de modo imperceptível por telespectadores apáticos e acríticos. A quantidade e o imediatismo prevalecem sobre a qualidade, fazendo dos consumidores seres pouco seletivos, pouco exigentes. Reality shows com temporadas infinitas conseguem expor o ser humano ao ridículo ou ditar novos padrões de vida (e de consumo).

E dessa forma se esvai o senso de decência, de vergonha, de certo ou errado. A nova geração, que nasce imersa nesse meio fluido, compulsivo, ditador, alienante, perde a noção de convivência familiar e social. Na era em que a comunicação interpessoal foi facilitada, quase contraditoriamente o individualismo entra em cena. O fato de que a sociedade é construída pelo somatório de atitudes individuais parece ter sido ignorado – ou esquecido na pauta do reality show da vida.

Das saudades que trago na vida

saudades

Tudo tem seu fim – só a saudade que não.
E é bem verdade. Ando sentindo saudade de tudo – e de muitos.
De meus pais, avós.
De quem cuidou de mim – por dentro e por fora.
Saudade de ouvir uma voz que acalenta – como a de um anjo, que agora anjo é.
Saudade do que está perto, ao mesmo que tão distante.

Intocável. Irrealizável.

Saudade sem fim.

“NÃO SOU FREIRA, NEM SOU PUTA”

kikaalmodovar2

Personagens passivas ou patéticas: a figura feminina constantemente é vítima dos estereótipos construídos e reafirmados pelo meio machista. Apesar do cinema aos poucos dar espaço para a discussão de gêneros, é fácil se deparar com mulheres interpretando personagens que obedecem à dicotomia virginal/sedutora, submissa/solitária.

Mas é aqui que entra Pedro Almodóvar, conhecido por suas protagonistas ilustres – mulheres: nem freiras, nem putas. O diretor demonstra uma relação de intimidade com a representação feminina desde a escolha dos nomes de seus filmes: Pepi, Luci, Bom y Otras Chicas del Montón, Kika, La Flor de mi Secreto, Hable con Ella, Mujeres al Borde de um Ataque de Nervios, Todo sobre mi Madre.

Estando ou não em seus títulos, as mulheres de Almodóvar são desenhadas com fortes traços de realismo, pintadas com peculiares cores – marcantes, quentes, fortes. Em Volver, por exemplo, o foco está na relação entre três gerações de mulheres. Apesar de suas histórias divergirem em diversos pontos, há sempre um encontro, um mútuo reconhecimento – e faz parecer como se a fantasia se encontrasse com a realidade, e vice-versa.

936full-volver-photo

(…) Afirmam que o papel da mulher no cinema tem sido sempre estereotipado. A obra de Almodóvar se caracteriza, em geral, por não reproduzir os clichês, mas por tomar os próprios clichês como objeto crítico e temático de seus trabalhos.

É o que diz Ana Lucília Rodrigues em seu livro Pedro Almodóvar e a Feminilidade, em que analisa o filme Kika para traduzir a relação íntima que o diretor possui com o universo feminino. Apesar de ser apenas uma das dezenas de produções do diretor que trazem a mulher no papel principal, a escolha por Kika pode ser justificada por Kika – e apenas Kika – ser toda a trama, todo o drama.

Kika poderia ser eu, poderia ser você. Kika expira luz, alegria, força, otimismo, vida. Ela é a protagonista de uma das cenas mais longas de estupro da história do cinema e, parecendo superar os limites da natureza, sai do papel de sofredora para ser “ativa na sua passividade”. Kika tenta manter uma conversa com o estuprador, em um momento tão íntimo que até vale compartilhar seus problemas cotidianos. Surreal e inspiradora: a mulher é toda reviravolta.

20090303elpepucul_26

E como discordar de Almodóvar quando diz que “os homens também choram, mas as mulheres choram melhor”? Sentimentos à flor da pele, suas protagonistas são um exagero, um misto de sensibilidade e força – mulheres, as melhores representações da beleza e dor da vida. São elas a base e desenvolvimento de seus filmes, juntamente com toda dramaticidade. Elas estão ao centro, e o que as circundam são retalhos delas mesmas – seus maiores medos e anseios, reprimidos ou incontroláveis.

Sole, Irene, Raimunda, Kika, Lena, Pepi, Luci, Bom, Lydia, Huma, Elena. Elas, tão difíceis de desvendar – tão reais que a dor e alegria de cada uma pode ser compartilhada. Almodóvar foge do ideal e apresenta a mulher humana, mãe, filha, puta, santa, que sofre, luta e não se cala. A vida das mulheres vai além do que está enquadrado na tela. Suas histórias repetem-se rotineiramente nas casas de família e prostíbulos, de norte a sul. Almodóvar dá às mulheres a dose de reconhecimento que os rastros de machismo no cinema insistem em ocultar.

A gratidão é uma pessoa

Da união entre Abdias Ferreira Mendes e Georgina Esmeraldina Mendes, nasceram quatro filhos. Em 1934 era a vez de Amauri Ferreira Mendes vir ao mundo. No dia 1º de janeiro de 2014 completou, pela primeira vez, oito décadas de vida – e em 19 de julho completou 80 anos pela segunda vez. Não sabe dizer com exatidão o dia em que nasceu, mas acredita que tenha sido em janeiro, apesar de seu registro de nascimento afirmar o mês de julho. “Naquele tempo não se importavam com isso e colocavam qualquer data”.

Nesses últimos tempos, Amauri parece frágil como um pequeno pássaro. Há dois anos perdeu sua esposa, Rita Correia Mendes, com quem foi casado por quase 60 anos. Está sempre a lembrar e relembrar dos momentos que passou a seu lado e às vezes chega a confundir sonhos com a realidade. “Tem dias que acho que ela está aqui e vou até a sala para procurá-la”. Talvez esteja.

A segunda grande perda recente da vida de Amauri foi Lili, que por anos foi sua melhor companhia e o deixou há menos de seis meses. Sua primeira e única cachorrinha. Com o coração, corpo e mente fragilizados, todas as lembranças, sejam grandiosas ou singelas, fazem com que se emocione. Não tem vergonha de chorar ou de agradecer às pessoas que o rodeiam por cada minuto de vida compartilhado.

A solidão o incomoda, mas a agitação também. Prefere ficar deitado, ao lado de seu radinho de pilha que narra algum jogo de futebol. Não perde uma única partida de seu time de coração: Santa Cruz, de Pernambuco, da série C. Outro som que gosta de ouvir é o cantar de seu passarinho Lilico, um canário-da-terra de 14 anos de idade – isso o faz relembra que sua pequena Lili viveu por 13 e sua esposa, por 78.

amauri

O olhar otimista acerca da vida talvez tenha o ajudado a sempre seguir em frente. Nasceu em Sanharó, agreste de Pernambuco, onde o clima semiárido atinge e deixa rastros de seca. Feijão e arroz sempre foram a base da alimentação, mas por incontáveis vezes não teve o que comer. Nesses dias duros, a solução era se juntar aos gados e se alimentar da palma junto a eles. “Por favor, não conte isso a sua mãe”.

Enquanto Georgina Esmeraldina ficava responsável pela casa e pelos filhos, Abdias trabalhava na terra dos senhores. Às vezes conseguia trazer para casa um pouco de dinheiro, ou ainda melhor, um pouco de alimento. Relata que muito queria admirar seu pai pela força e dedicação à família, mas não havia como. Abdias era alcoólatra. Abdias batia em Georgina Esmeraldina. “Ela dizia: ‘Abdias, não tem comida para os meninos’. Ele não dava nenhuma resposta… Apenas batia nela e saia pra gastar o dinheiro com bebida”.

Muitas vezes seu pai disse que ia partir, apontar o rumo em direção à capital em busca de uma vida melhor. Sua mãe nunca deixou que fosse, talvez pelo medo de não conseguir sustentar a família sozinha ou talvez fosse a insensatez do amor. Mas um dia Abdias decidiu partir – e foi. Amauri foi amarrado por Georgina Esmeraldina ao pé da mesa para que não corresse atrás do pai. Uma cena que jamais esqueceu e enche os olhos ao relembrar. “Apesar de todos os defeitos, era meu pai que estava indo embora e eu sabia que era para nunca mais voltar”.

A vida de Amauri começou a mudar quando teve idade suficiente para embarcar numa viagem. Despediram-se de Sanharó e partiram em direção a Recife, litoral de Pernambuco. Alguns familiares acolheram a família e ajudaram na reconstrução de uma vida. Todos os irmãos foram em busca de um trabalho, inclusive Amauri, apesar de sua pouca idade.

Passado algum tempo, Georgina Esmeraldina, com a ajuda dos filhos, conseguiu, enfim, comprar uma casa. Um lar que chamaram de “meu”. A Vila dos Comerciários, Zona Norte do Recife, foi o destino final daquela família retirante.

Amauri nunca saiu daquela casa: “Aqui já viveram minha mãe, meus irmãos, minha esposa e minhas filhas. Alguns se mudaram, outros partiram, enquanto eu fiquei. Hoje, depois de tantos anos, me vejo só nesta casa que jamais foi vazia”.

005

E também foi ali que conheceu Rita. A moça jovem e bonita, de pele alva, cabelos escuros e olhos claros, que morava a duas casas ao lado, encantou Amauri. “Sempre estava trabalhando em casa e quando eu ia passando pela frente ela corria até a janela para que pudéssemos nos olhar”. Das trocas de olhares e conversas de fim de tarde à janela, Amauri e Rita tornaram-se namorados e, não muito tempo depois, marido e mulher. Tiveram duas Anas – uma Rita e a outra Roberta.

Enquanto sua esposa costurava em casa, Amauri trabalhava como garçom em um restaurante no centro da cidade. “Minha mãe nunca deixou que eu e meus irmãos crescêssemos sem educação e foi por isso que consegui me sustentar em Recife”.

Mas seu corpo não conseguiu levar até o fim o trabalho exaustivo. Os reflexos de uma infância sofrida trouxeram consequências. Por conta de uma alimentação deficiente, Amauri sofria de problemas nervosos e de má formação óssea. Inúmeras vezes foi levado ao sanatório e tratado como louco. “Eu tinha problemas nos nervos, não na mente. Eu não era internado, mas sim preso naquele lugar”.

Com um misto de dor, saudade e gratidão, Amauri relembra os momentos em que foi socorrido por sua mulher. “Eu tinha muitas crises de coluna e isso começou a deformar meu corpo. Tinha vezes que não conseguia andar e só gritava de dor. Rita não pensava duas vezes antes de me segurar nos braços e ir andando até o hospital. Não sei quantas vezes ela fez isso por mim, mas não foram poucas”.

Apesar de tantos empecilhos e dificuldades, Amauri jamais perdeu a fé ou deixou de achar bela a vida – uma dádiva. Acolheu novos corações que chegaram ao mundo e despediu-se de muitos que multiplicaram e dividiram amor junto a ele. Riu e chorou, entre vitórias e derrotas, ganhos e perdas. Cativou a muitos e jamais cultivou inimigos. Transmitiu ensinamentos a todos que quiseram ouvir. Zelou por todos aqueles que permitiram ser amados.

Esposo de Rita, pai de duas Anas, avô de Fernanda, Lucas e Artur, amigo de incontáveis moradores da Vila dos Comerciários. Hoje, aos 80 anos de idade, acredita que sua missão na Terra tenha sido cumprida e apenas espera pelo dia em que poderá descansar na eternidade. “Cada fechar e abrir de olhos significa um dia a menos para mim. Apesar da tristeza e solidão que me acompanham, procuro sempre dar valor às pequenas alegrias que a vida ainda me dá. Um telefonema ou uma partida de dominó fazem toda diferença para mim. Hoje eu espero pelo dia em que eu possa, enfim, partir em paz e repleto de alegria no coração”.

Amauri nunca se esquece de agradecer por tudo e a todos. E eu agradeço: obrigada, meu avô!

amauri